A vida oferece, a todo instante, momentos sutilmente encantadores para que possamos apreciar. Mas, às vezes, por falta de sensibilidade, pressa ou mesmo pura distração, nós não percebemos. Por sorte, quiseram as estrelas que no último dia dez de maio eu estivesse aguçado o suficiente para que não deixasse de reparar numa pequena graça em forma de coincidência.
Foi o domingo de Dia das Mães, uma das poucas vezes em que estive longe da minha mãe nessa data. Era noite, e eu já havia conversado com ela pelo telefone e renovado as declarações do amor mais sincero que possuo. Ficou feliz com as flores que eu enviei para a sua casa. Quando eu vim para São Paulo, uma das minhas maiores angústias vinha da ideia de ficar longe da minha família. Porém, hoje eu até me sinto privilegiado por morar razoavelmente próximo de todos. O Rio de Janeiro é logo ali. Se não fossem tempos de pandemia, eu teria passado esse dia, mais uma vez, ao lado de dona Rose.
Entretanto, eu me encontrava em minha casa naquele fim de domingo, quase meia-noite, relaxado e sonolento após uma (e somente uma) taça de vinho tinto, enquanto a minha pequena caixa de som tocava uma playlist online desconhecida de MPB que eu havia escolhido no celular. E foi nesse cenário que Marisa Monte começou a cantar "Amor I love you", canção essa que me desperta uma intensa memória afetiva de minha adolescência; tão forte ao ponto de ela nunca ter se tornado trivial para os meus ouvidos. E foi tão maravilhoso escutá-la sem querer que eu cheguei a comentar sobre isso com um amigo na mesma hora, talvez por estar levemente embriagado.
Ponderei que essa canção já devia ter uns vinte anos. E logo depois, já despertado por ela, tive a curiosidade em pesquisar, de fato, a sua data de lançamento. E foi aí que o tal momento sutilmente encantador acenou para mim. "Amor I love you" completaria exatamente vinte anos no dia seguinte, ou seja, dentro de poucos minutos, em onze de maio! Ela foi lançada em 2000.
Escutar, despropositadamente e depois de algum tempo, uma das músicas mais marcantes logo em seu aniversário de vinte anos, soou para mim como um mimo da vida; uma agradável coincidência. Tenho certeza de que isso foi coisa de minha mãe, compartilhando a saudade comigo, e me enviando, lá do Rio, boas energias ao pensar em mim enquanto cortava os cabos de cada flor recebida, a fim de que durassem mais. Os pensamentos chegaram todos em forma de Marisa, para que pudessem acender em mim, naquele instante, uma sensação gostosa e plena ao revisitar boas lembranças.
"Amor I love you" talvez tenha sido a primeira música com a qual eu me relacionei da forma como me relaciono com músicas hoje. Ouvir música não é simplesmente ouvir notas musicais; não se resume a agradar os ouvidos com melodias e vozes. Enquanto escuto música, eu crio um verdadeiro universo paralelo, em que me imagino em situações, atitudes e diálogos, muitas vezes completamente diferentes do que eu poderia viver no momento. A música me transporta para muito longe; numa viagem deliciosa em que atravesso muros e barreiras rumo a lugares que são inimagináveis no silêncio. É ela a maior fonte de inspiração que possuo ao escrever. Não é à toa que a música é considerada a primeira arte.
Eu tinha treze anos quando "Amor I love you" estourou nas rádios. Tocava todos os dias, embalando o turbilhão de sentimentos que eu experimentava. As coisas simples de criança começavam a ceder lugar a sentimentos novos e confusos. Além de eu estar apaixonado pela primeira vez, já não me bastava tanto ser um bom aluno pela manhã e estar com os meus amigos na rua à tarde. Eu queria mais; eu ansiava por experiências, mesmo que eu não soubesse exatamente quais eram elas. E começava a vislumbrar o futuro como um leque repleto de oportunidades bem diferentes entre si. O fio único e reto que me conduziu na infância acabava de chegar num ponto em que se emaranhava em gostosas incertezas e curvas que, ao mesmo tempo e ainda me conservando a pureza de espírito, me tornavam ávido pelos diversos prazeres que eu poderia (e ainda iria) desfrutar na vida.
"Amor I love you" conta ainda com a citação feita por Arnaldo Antunes de um trecho do livro "O Primo Basílio", de Eça de Queiroz, que eu tentei ler muitos anos depois (mas não cheguei a terminá-lo). Aos treze anos, eu não fazia ideia do que era dito naquela citação; era muito rebuscado para mim. Mas hoje, ao ler o trecho, é impossível deixar de exaltar o autor pela perfeição com a qual ele descreve a experiência quase sinérgica de Luísa, a personagem principal, ao receber uma carta de amor de seu primo.
"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!". Todo mundo que vive ou já viveu uma paixão correspondida entende muito bem o acréscimo de autoestima, o encanto de cada hora e o luxo radioso de sensações do qual a alma se cobre.
É interessante ter lembranças tão vivas de vinte anos atrás. Parece coisa de novela ou filme; um dramalhão hollywoodiano centrado na história de uma personagem que tenta se redimir do passado, ou reconquistar algo. Soa velho; eu estou velho. Meus trinta e três anos já me permitem ter memórias afetivas longínquas. E é bom conservá-las. O presente, às vezes, nos aprisiona numa cela retangular que mal nos permite ver o que existe lá fora. Entretanto, nossas mais profundas memórias nos levam para outro lugar, num outro tempo, e possibilitam que nós, ao percebermos o quão diferente tudo se tornou, possamos acreditar numa nova maneira de encarar algumas coisas que hoje, porventura, não sejam tão boas. Lembrar para vislumbrar.
Ao longo desse texto, eu mencionei datas e escrevi a minha idade. Não foi à toa. Esse texto foi feito para envelhecer, no sentido de estabelecer um marco temporal. Se daqui a mais vinte anos eu continuar saboreando as mesmas sensações que ainda tenho, tanto ao ouvir "Amor I love you" como qualquer outra canção que me remeta a momentos especiais em minha vida, isso significará que, mesmo que eu enfrente fases ruins no futuro, as coisas não estarão perdidas. Já está morto aquele que não sente mais nada, por mais que respire.
E, mesmo que eu e esse texto envelheçamos em datas e rugas, caso eu continue revisitando as mesmas sensações das memórias que vim espalhando ao longo da vida, também estará mais do que provado que o tempo é relativo; mas não no sentido físico postulado por Albert Einstein (embora talvez tão complexo quanto). Pois o tempo passa, corre, levanta voo; muda tudo. Traz e leva embora, num sopro de nuvens. Mas dentro de nós, ele também pousa. E quando ele pousa, meu amigo, definitivamente ele para.
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Parabéns Primo, vc é sensacional. Continue escrevendo, a arte da escrita vai deixar suas memórias vivas no tempo e no espaço. Bjao
ResponderExcluirObrigado, prima! Beijo =)
ExcluirLindo texto... continue a escrever, são palavras que trazem lembranças boas de tempos atrás ... No corre-corre diario nós perdemos de tantas emoções e nestes dias de isolamento social precisamos visitar nossos sonhos de ontem, para ter a certeza que tudo vai ficar bem... Parabéns e obrigada...
ResponderExcluirExatamente isso! Essa é a essência. Obrigado pelas belas palavras =)
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