Fila do supermercado. Minha cesta de compras continha biscoitos, chocolates e
refrigerantes ̶̶ pouco adequada a um adulto que já cruzou os trinta,
mas que me fez feliz. As pessoas aguardavam, cada uma, sobre uma fita adesiva
que marcava o lugar no chão e que, juntas, garantiam a distância de pelo menos
1 metro e meio entre elas. Eu era o segundo da fila, sem considerar a cliente
que já estava terminando de passar as compras no caixa.
Na minha frente, em primeiro, estava uma senhorinha magra, curvada, de cabelos
curtos e totalmente brancos, integrante de longa data do grupo de risco da
covid-19. (Não entendi por que ela não estava na fila preferencial.) Todos de
máscara, sem exceção: do pessoal da limpeza aos operadores de caixa, da
criança ao idoso. Não percebi São Paulo adormecendo tanto assim durante esses
meses de quarentena, mas a máscara todo mundo aprendeu a usar. Por decreto.
Todos menos eu, admito. Todas as minhas máscaras vão caindo enquanto eu falo.
Duas frases e já vai aparecendo o narizinho, abusado. Fico levantando o pano
toda hora, coloco a mão na frente; lembro que não pode. As máscaras mais
apertadas me incomodam de tal maneira que eu desisti delas logo de cara. Optei
pelas mais frouxas. Ainda assim, nos momentos de agonia, penduro a máscara na
orelha. Embora eu não goste, acho meio ridículo. Não dá pra levar a sério
alguém com uma máscara esvoaçante pendurada numa das orelhas; é tipo zíper da
calça aberto. Daí desço-a para o pescoço, o que é pior higienicamente falando,
já que o tecido interno pega as partículas de lá. Enfim, não tem para onde
fugir. (Aceito sugestões.)
A mulher que estava passando as compras usava o perfume mais doce, mais forte
e mais enjoativo que eu já senti na vida. Certamente ela estava infestada de
coronavírus, pois não acredito ser possível alguém tomar banho com um perfume
daquele sem estar sofrendo de perda de olfato. É a única explicação que a
isenta de culpa, coitada. Senti a sua essência repulsiva quando ela passou por
mim para pegar uma Coca-cola na geladeirinha do corredor da fila, e depois ao
voltar rapidinho para o caixa. Fiquei com pena da senhorinha imediatamente
atrás dela e à minha frente: as coisas em seu metro quadrado, mais próximo da
cheirosa, não deviam estar nada fáceis. O rastro de fragrância que a mulher
deixou entrou com tudo em minhas narinas, que, num vacilo meu, não estavam
cobertas pela máscara naquele maldito instante. Meu nariz começou a formigar.
O fato é que eu sou desses que espirra muito. Desde sempre, desde que me
entendo por gente. Eu espirro mesmo, sem dignidade, por qualquer coisa:
perfume, poeira, gato. Minha mãe tem cinco gatos em casa; a vida não é fácil.
Eu ainda morava com os meus pais quando os gatos começaram a aparecer.
Primeiro a Jolie (de Angelina Jolie), que demorou para dar cria, mas deu.
Matriarca dos gatos, Jolie certamente ganhará um busto de bronze em sua
homenagem no quintal de casa após ter partido. Gato tem busto? Não sei. Outros
gatos vieram da rua, pularam o muro e adotaram a minha família. Sim, são os
gatos que adotam os seus donos, não se engane. E outros já morreram. Minha mãe
chegou a ter oito gatos em casa; acho que essa foi a maior quantidade que
tivemos. Eram os tempos áureos felinos. E eu ainda morava lá, para a
infelicidade do meu sistema imunológico. Aliás, ele descobriu que não se dava
bem com gatos quando passou a ter contato diário com vários.
Alérgico que sou, eu já contei mais de quarenta espirros seguidos por causa
dos gatos. Mais de quarenta espirros seguidos. Repetindo: MAIS DE QUARENTA
ESPIRROS SEGUIDOS. Sendo assim, é de se supor que a minha alergia aos gatos
cause pane de sistema em minha mãe; pois ela me ama, e também ama os gatos.
Dois amores seus que, entre si, não reagem bem. Sem saber lidar com a
situação, ela se apega à mais conveniente explicação que lhe ocorre, numa
forma desesperada de tentar acabar com o dilema e ficar em paz consigo mesma:
põe a culpa no cachorro. “Você está assim por causa do cachorro!”, diz ela
apontando para o cão, enquanto este balança o rabo, inocente, achando que
querem lhe fazer festa.
Tadinha de minha mãe, devo dizer em sua defesa que ela também ama o cachorro.
Mas é que os gatos estão em outro patamar para ela. O cachorro é mundano; o
gato é divino. É como no Egito Antigo, onde os felinos eram sagrados. E ambos
merecem o amor de minha mãe, pois o amor não é exclusividade dos céus; aqui,
entre areias e pedras, ele também existe. A diferença é que lá em cima ele
reina, enquanto que por aqui ele é um mero plebeu competindo com outros
sentimentos. Enfim... Por serem divindades, os gatos possuem seus caprichos
satisfeitos lá em casa. “Não pode fazer isso por causa dos gatos”, “tem que
fazer aquilo por causa dos gatos”. Seria minha mãe a encarnação de um egípcio?
Vai saber. Não vou me admirar se ela também decidir mumificar a Jolie e
enterrá-la sob a futura estátua de bronze da gata.
Deuses que são, nenhum dos gatos da minha mãe gosta muito de contato humano.
Não se permitem tal desatino. Mas um deles deixa que eu o pegue por alguns
minutos, sem reclamar. É o meu preferido justamente por me conceder a honra e
a graça de sua atenção nas brincadeiras que eu proponho. Afinal, apesar dos
espirros, eu também amo os gatos. Faço vozes bobas, abraço e suspendo o gato
feito o macaco Rafiki ao apresentar o Simba para os animais da selva n-O Rei
Leão. (E ainda canto a musiquinha-tema.) Quando eu trago o bicho de volta,
percebo que ele está puto. Mas ele nada faz, apenas me observa com aquele
olhar de quem só não me arranha porque não quer sujar as unhas de sangue de
mortal; não se rebaixaria dessa maneira.
Na realidade, o gato sabe que a vingança chega sem que ele precise fazer nada.
Talvez por isso tenha aprendido a não se importar durante o pouco tempo que eu
consigo brincar com ele. Pois não demora muito para que eu já faça a careta
que precede o espirro, emitindo o primeiro “aaaaaa” introdutório do atchim.
Estando eu sem forças e distraído pela iminência do espasmo, o gato pula do
meu colo e caminha afastando-se de mim lentamente. Enquanto eu me esgoelo
entre espirros infinitos, ele olha para trás, triunfante, poderoso feito um
deus, mesmo. Mas não adianta: toda vez que eu visito a minha família, eu não
resisto e pego o gato novamente no colo. Nesse amor bandido, eu sou a mulher
do malandro.
Voltemos ao supermercado. O que eu temia estava para acontecer: a mulher
perfumada me encorajou a um espirro descabido. Não é fácil espirrar em tempos
de coronavírus. Em 2020, o espirro se tornou a nova flatulência.
Inconveniente, constrangedor, passível de julgamentos. Naquele momento, eu
queria estar com algum amigo para que eu pudesse lhe pedir que me desejasse
“Saúde!” o quanto antes. Isso mesmo, antes do espirro. O meu espirro não sai
se ele for previsto por alguém, e acredito que isso aconteça com outras
pessoas. O espirro é um artista de palco, um ilusionista de coelho e cartola
que está ali para tentar surpreender com a mágica de sempre. Quando o “Saúde!”
é dito antes, quando o truque é relevado, ele simplesmente desiste de se
apresentar, e volta cheio de estrelismo narinas adentro, frustrando os
bastidores ̶̶ músculos faciais e
mucosas ̶̶ que trabalhavam para que aquele espetáculo
ocorresse. Mas seria melhor mesmo que não acontecesse naquele momento, embora
a sensação de espirro abortado seja desagradável.
Mas não, não tinha ninguém ali comigo. Era somente eu e aquela fragrância
exagerada que havia alertado o meu corpo quanto ao perigo. O espirro viria,
sem cerimônia. E, experiente que sou, conheço a natureza dos meus espirros.
Aquele seria dos grandes. Eu diria que dos raros; mesmo para mim, mais
acostumado a eles do que a média das pessoas, creio. O meu nariz estava
fazendo um bom trabalho e a careta já estava insustentável. Seria realmente um
espirro de respeito, coeso, com início, meio e fim. Aquele atchim clássico,
completo, modulado, sinfônico, bonito de se ouvir; regido por maestro. Um
espirro consagrador do coronavírus (se este fosse a sua causa) e que
culminaria na desistência da pobre máscara em continuar com a sua carreira,
tamanha a incompetência para lidar com aquilo. Seria um estrondo capaz de
assustar uma mariposa agourenta que finalmente voa após três dias imóvel numa
parede fazendo sabe-se lá o quê. Um espirro bíblico, capaz de mover montanhas,
de abrir o Mar Vermelho e de encerrar em si a história da humanidade após
anunciar o apocalipse na língua dos anjos, permitindo que eles toquem suas
trombetas.
Só tive tempo de levantar o meu braço e de aproximar o meu nariz da dobra
interna do cotovelo, como manda a tal da etiqueta respiratória. E assim
espirrei. E que espirro! Digno de nota. Sem discrição nenhuma. Um espirro de
emagrecer, de purificar a alma, exorcizando todos os meus demônios e os
obrigando inclusive a pedirem desculpas pelo encosto. Espirrei alto, um
espirro único e demorado, como um peão que sustenta o toque de um berrante
para chamar atenção do gado. Tão forte que permaneci ainda por vários segundos
com o nariz escondido no cotovelo, de olhos fechados e experimentando certa
vertigem. Senti as bochechas arderem; certamente era o calor daquelas pessoas
todas ao redor me olhando após o meu espasmo. Finalmente, levantei o rosto,
abri os olhos e as lágrimas escorreram; tantas que até pingaram do queixo.
A senhorinha do grupo do risco, a primeira da fila, voltou-se para mim, é
claro. Feito o gato-deus assistindo à minha tragédia com o seu olhar pungente.
Olhei pra ela meio envergonhado. Naturalmente, supus que ela estivesse
assustada por trás de sua máscara e me desculpei fazendo piada da situação. No
entanto, para a minha surpresa, me dei conta de que ela era a minha cúmplice
quando apontou discretamente para a mulher com o perfume enjoativo, deixando
claro em gestos que sabia que a cheirosa era a causadora da minha perturbação.
E não satisfeita, a velha ainda se aproximou de mim, valente. "Isso é espirro
de rinite, do perfume dela", sussurrou. E completou: "Você não percebeu por
causa da máscara, mas na verdade eu estava sorrindo pra você assim que você me
olhou após o seu espirro. Não se preocupe, jovem”. E então, serena, ela se
virou novamente para a frente da fila. Era a sua vez no caixa.
Pensando bem, talvez essa seja uma das maiores oportunidades trazidas pela
pandemia em meio a uma sociedade que teve que esconder a boca atrás da
máscara: a oportunidade de aprender a decifrar os sorrisos contidos nos
olhares.
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RINDO MUITO! PARECE QUE ESTOU VENDO MEU FILHO ESPIRRANDO. TAMBÉM TEM ESSES ACESSOS DESCRITOS POR VOCÊ! QUANDO COMEÇA A ESPIRRAR É UM CAOS.
ResponderExcluirHahaha! Quando eu começo, eu não sei quando vou parar. Obrigado ;)
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