Confesso que eu tinha grandes expectativas sexuais para aquele fim de tarde de
sábado, embora o bom senso recomende não alimentá-las. Da janela do
apartamento, eu podia ver uma São Paulo amarela do sol de outono. As janelas
de outros prédios refletiam a luz solar em brilhos que excitavam a minha mente
repleta de “más” intenções para as horas seguintes.
Um banho morno e demorado foi sucedido por um ritual caprichado de escolhas e
autoprodução em frente ao espelho. A barba que ameaçava espetar foi vencida
pelo aparador elétrico. O pouco de cabelo que ainda me resta da alopécia foi
cuidadosamente posto em ordem por um gel fixador. Teve até espaço para um
creme de rosto hidratante-multivitamínico-protetor-solar-pós-barba, que
mais completo do que isso, só se fizesse o meu café—ou me devolvesse os fios
de cabelos perdidos. Se eu fosse mulher, aquela certamente seria a hora do pôr
um batonzinho; vermelho, talvez. Acho que eu seria dessas que usa batom
vermelho de vez em quando, bem rouge mesmo, só porque quer, sem medo
dos julgamentos alheios. Enquanto eu me arrumava, ia tomando aos poucos uma
lata de energético que eu não sabia dizer se estava pura ou batizada de
luxúria. Se sexo fosse crime, eu estaria disposto a ser preso; algemado, quem
sabe.
Pedi um Uber, que chegou rapidamente. Descobri que eu havia acertado na
roupa e no perfume quando o motorista perguntou simpático se eu estava indo
namorar. "Se tudo der certo, sim", respondi. "Bem, parece que a sua parte você
fez direito", rebateu ele. Talvez aquele cara não soubesse, mas as suas cinco
estrelas já estavam garantidas ali, ainda que a viagem mal tivesse
começado.
Cheguei ao local do encontro: Praça Benedito Calixto, bairro de Pinheiros.
Vagas lotadas ao redor da praça—ainda bem que eu havia deixado o carro em
casa. Nunca encontro vaga aos sábados, pois é o dia em que ocorre a famosa
feira de antiguidades do lugar, a mais cool que eu já vi. Frequentada
por gente moderna, a alusão ao passado na feirinha da Benedito Calixto se faz
presente nos itens que são vendidos por ali, e também na Igreja do Calvário
(com quase cem anos de história), que se impõe do outro lado da rua, virada
para a praça. De resto, observa-se estampado nos rostos, nos gestos e nas
roupas das pessoas certo culto às liberdades de pensamentos e costumes. A aura
vintage que paira sobre o local mistura-se à fuga de padrões de seus
frequentadores, resultando num interessante ambiente que remete ao passado e
que projeta o futuro, mas que não diz muito sobre o presente.
Debaixo dos óculos escuros e de uma camisa manga-curta de botão feita com
tecido leve e estampa descolada, eu escondia certa apreensão. Por mais que
situações como aquela já não fossem uma novidade para mim, é impossível lidar
naturalmente com o momento que antecede o encontro com alguém que você
conheceu através de um aplicativo. A gente até tenta fingir normalidade—compra
algo, toma algo, lê algo, tenta parecer o mais descontraído possível—mas
enquanto a bendita pessoa não chega, parece que a cada minuto vamos renovando
a nossa ansiedade à espera do minuto seguinte.
Porém, naquele sábado, o meu pacote de ansiedade havia sido renovado por um
tempo maior ao receber uma mensagem de que “Vou me atrasar, desculpe!”. Tudo
bem, atrasos acontecem. O errado sou eu, pontual incorrigível. Antigamente eu
achava que ser pontual era uma baita d’uma qualidade minha. Ainda acredito que
seja, mas hoje eu tento burlá-la; quase sempre sem sucesso. Continuo assinando
recibos de trouxa. Quem é que chega na hora marcada para um encontro informal
nas caóticas São Paulo e Rio de Janeiro? Eu que lide com isso, e aprenda. (Mas
não aprendo.)
O sol já pedia licença para se retirar, assim como a feira e todas aquelas
pessoas. Enquanto o meu date ainda não acontecia, decidi
subir a escadaria da Igreja do Calvário para fazer um sinal-da-cruz rapidinho,
da porta mesmo, olhando para o altar. E também para tentar tirar algumas boas
fotos lá de cima (confesso que não sei dizer qual era a prioridade). Mas fui
surpreendido por uma aglomeração que caminhava pelas laterais da igreja em
direção à saída dos fundos, em procissão. Um padre bastante animado era
seguido por um punhado de gente, e eu descobri que a homenageada em questão
era Nossa Senhora de Fátima, em comemoração ao seu dia, treze de maio. Os
cânticos conhecidos dos meus velhos tempos de católico assíduo e as velas nas
mãos de cada uma daquelas pessoas—que já brilhavam bonitas sob aquela noite
que caía—atraíram a minha atenção de tal maneira que eu acabei me aproximando
dos fiéis.
Um senhor carismático e apressado reparou que eu ainda não segurava nenhuma
vela, e logo tratou de colocar uma em minha mão, sem que eu pedisse. Tirou-a
de um saco cheio delas; era ele quem estava munindo de luz aqueles que se
juntavam à caminhada. Não tive tempo de recusar. Logo reparei que outras
pessoas haviam chegado atrás de mim, todas já iluminadas e cantantes. E foi
assim que me vi no meio da procissão, já participando dela, quase sem
querer.
Em dado momento, aproximei-me da imagem de Fátima, que era carregada por
várias pessoas que iam se revezando em cada uma das quatro pontas da liteira.
E foi ali que presenciei o momento mais cheio de ternura daquela procissão.
Uma senhora idosa pediu a um rapaz que ocupava uma das pontas para carregar a
santa. O rapaz preocupou-se com a sua fragilidade, mas cedeu à insistência da
velha. Sabendo que ela não iria aguentar por muito tempo, ele ficou ao seu
lado e retomou a posição de carregador assim que percebeu os primeiros sinais
de incômodo dela. Os poucos segundos carregando a imagem foram o suficiente
para aquela senhora ficar feliz. Após ter feito aquilo que julgava ser uma
honra para si, levantou uma das mãos e acariciou os pés da santa, numa fé do
jeitinho dela, dentro do que ela acreditava, trazida ao longo de muitos e
muitos anos e que parecia percorrer cada um dos fios brancos de sua
cabeça.
Uma brisa mais forte apagou a minha vela. Um senhor grisalho logo encostou a
sua chama em meu pavio esfumaçado, fazendo-o acender novamente. Agradeci.
Recebi uma cutucada no ombro. O rapaz que havia retomado o lugar da senhora
perguntou se eu não queria carregar a imagem. Minha primeira reação foi
recusar, afinal eu estava ali muito mais por conta da minha memória afetiva do
que por
convicção da fé católica. Mas acabei aceitando, bem desconfortável, porque veja só, meu Deus!, a essa
hora eu estaria beijando na boca, quiçá sobre uma cama. Não esperaria jamais
que eu estivesse no meio de uma procissão, carregando a imagem de Nossa
Senhora. Pensei que talvez ao tocar na liteira eu pudesse pegar fogo ali
mesmo, diante de todos, por conta do tanto de “pecado” que eu havia
arquitetado para aquela noite. Eu não estava vestido para a santidade, mas sim
para o prazer. Um raio poderia cair sobre mim, encerrando ali a minha vida
terrena, e eu seria conduzido para conversar com um Cristo bastante
decepcionado com a minha falta de respeito. Entretanto, por sorte, Jesus está
bem distante do homem que alguns religiosos acreditam que ele seja.
Foi uma procissão curta, porém bonita. Uma volta apenas em torno da própria
igreja, terminando na entrada da mesma. O suficiente para, de alguma forma, me
fazer bem. E tempo suficiente também para que eu recebesse uma nova mensagem.
“Cheguei, cadê você?”. Desci sem pressa, sereno, pela escadaria do Calvário.
Ouvi mil pedidos de desculpas pelo atraso. Mas tudo bem... Eu estava
purificado, santo, casto... Brincadeiras à parte, eu me sentia realmente mais
leve, calmo. Cristo pregou o amor e o perdão mais do que tudo; Ele seria capaz
de perdoar um pecador não apenas sete vezes, mas sim setenta vezes sete. Logo,
quem sou eu para não perdoar alguém? Ainda mais que aquele atraso havia me
proporcionado uma (inesperada) experiência agradável. Portanto, perdoei sim.
Perdoei fácil. Perdoei sorrindo. Perdoei, cheio de segundas intenções.
Fomos a um pub ali perto. O garçom nos trouxe duas grandes e congeladas
canecas de vidro, das quais transbordavam um bom chope. Desejou-nos “Saúde!”.
Brindamos. A gente sempre fica com receio de que o encontro real não seja tão
interessante quanto as prévias e longas horas animadas de papo virtual. Mas
não demorou muito para que nossas mãos quentes se encontrassem tímidas sobre o
balcão. Amém!
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