A velha Teresa somava oitenta anos de idade nas costas e ainda possuía carinho de sobra para preparar o café com leite de
seu esposo. A tranquilidade dava o tom daquela manhã, que se descortinava sem pressa, como manda a boa cartilha dos domingos. Um pequeno beija-flor
desconfiado se aproximava do basculante da cozinha, onde um bebedouro encoberto
por coloridas pétalas de plástico chamava a sua atenção. No canto da pia, um
radinho de pilha engordurado resistia ao tempo, valente, permitindo que
Roberto Carlos cantasse.
Nosso amor é demais
E quando o amor se faz
Tudo é bem mais bonito
Nele a gente se dá
Muito mais do que está
E o que não está escrito
Enquanto o café ia perfumando a casa ao coar num pano encardido do pó de outras manhãs, Teresa se atentava no
beija-flor. O pássaro bicou duas vezes a água misturada com açúcar antes de
ser tomado por uma ousadia que fez com que ele entrasse pelo basculante e batesse
as asas, imóvel, diante da idosa. Nesse instante, um riso impossível de ser contido brotou da
boca da velha, e que, de tão vivo que era, despertou de vez aquele dia.
Teresa se apressou ao encontro do marido para lhe contar o ocorrido. “Querido, um beija-flor! Um beija-flor lindo apareceu, meu amor!, e bateu as
asas parado na minha frente, na minha cara, paradinho no ar!”, empolgou-se a velha, quase derramando o café. Prostrado sobre a cama,
Severino esboçou uma careta que logo trouxe sua esposa de volta à seriedade. A saúde do velho estava cada vez mais fragilizada por conta de dois derrames e um infarto, que se juntavam ainda ao diabetes adquirido desde longa data.
Teresa e Severino se conheceram em 1960. Segundo ele, foi amor à primeira
vista. Casaram-se no outono de 63. Não tiveram filhos; as tentativas
fracassadas foram cedendo lugar ao conformismo ao longo dos anos. Sempre
unidos, os dois se orgulhavam das décadas de cumplicidade. Eram muito queridos
pela vizinhança, além de serem tomados como exemplo de amor conjugal. A sintonia entre os idosos saltava aos olhos daqueles que os conheciam. Mulheres e homens jovens perguntavam a eles qual era o segredo de tanto sucesso na vida a dois. Severino e Teresa jamais se desgrudavam; mantinham de pé a avidez um pelo outro, mesmo quando seus corpos passaram a deixar de corresponder à altura.
Severino agarrou a mão de sua esposa, enquanto ela apoiava a bandeja sobre o
colo para servi-lhe uma xícara.
— Minha velha, disse Severino.
— Sim, querido.
— Você sabe que é a coisa mais importante da minha vida, não sabe?
— Sei sim, meu bem!, respondeu Teresa em tom melódico e lançando
ao velho um olhar confiante.
— Você sabe também que não me resta muito tempo...
— Shh Shh Shh!—a velha colocou o dedo em riste em frente aos lábios—Não diga nada!.
Severino não se aquietou.
—
Precisa ser dito, meu amor... precisa ser... há meses a minha saúde vem
piorando. Já mal consigo sair dessa cama. Mas a minha preocupação é com
você!
— Por que comigo?
—
Quando eu partir, o que será de você? Não temos parentes vivos. Ninguém
para cuidar de você.
— Por favor, não diga isso...
—
Teresa, meu anjo! Meu anjo iluminador de toda a minha vida... vamos
encarar a realidade. Estamos velhos, mas a sua saúde ainda é de ferro. E você
tem a leveza da vida... Um beija-flor bobo voou na nossa cozinha e você veio
correndo para me contar. Você ainda é cheia de vida, Teresa! Já eu... já eu talvez
não esteja mais aqui amanhã.
— Mas Severino...
— E eu preciso lhe contar algo, minha linda.
— Ai ai, diga.
— Lembra da nossa lua de mel em Lisboa?
— Ora homem, como eu poderia esquecer? Foi tudo tão lindo!
— Pois bem. E lembra do Antônio Maria, rapaz que conhecemos por lá?
— Hum... rapaz, rapaz... Ah, aquele carpinteiro?
— Sim, o carpinteiro.
— O que tem ele?
— Um dia antes de voltarmos para o Brasil, ele me deu um presente.
— Um presente?
— Sim, um presente. Um presente secreto. E eu não podia falar nada sobre
isso até que sentisse que a minha hora havia chegado.
— Presente secreto da nossa viagem de lua de mel? De tantos anos atrás? Que
história é essa, Severino?
—
Ele fez para mim um porquinho de madeira... um cofrinho, na verdade. E orientou que eu depositasse ali papéis contendo, cada um, algo que eu desejasse para o nosso casamento. Votos de uma vida conjugal. Escrevi alguns e guardei
no porquinho.
— Mas por que isso, meu velho?
— O Antônio me disse que cada voto inserido nesse porquinho seria
concretizado em nossa relação ao longo dos anos. Contou-me também
histórias extraordinárias sobre o porquinho ter dado certo ao longo de gerações de apaixonados. Lendas do velho mundo, meu amor! E
hoje vejo que ele estava certo.
— Ora, mas que baboseira, querido!—disse Teresa rindo, porém
tentando não ofender—Se chegamos até aqui, foi por nossa causa, e também porque Deus quis, e
não devido a um porquinho de madeira guardador de votos.
—
Deixe-me continuar, Teresa. Para que você tenha um restante de vida feliz e
tranquila após minha partida, devemos quebrar o porquinho e ler tudo o que eu depositei lá dentro. Essa é a regra. E é isso que eu quero. Que nada de mal
lhe aconteça e que nada lhe falte. Quero que um dia, bem depois de mim, a sua partida se dê sem sofrimento.
— Severino, deixa disso, homem!
—
Por favor, pegue o porquinho nos fundos do guarda-roupa, na minha parte bagunçada,
que você não tem mais coragem de mexer já há algum tempo. E lá que ele
esteve nos últimos anos. Não foi fácil escondê-lo de você, mas eu consegui.
Teresa balançou a cabeça, inconformada, mas como não queria contrariar o marido moribundo, levantou-se para atender ao pedido. Enquanto isso, ouvia-se Cartola vindo da cozinha.
Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Sorrir pra não chorar
A velha retornou para junto de seu marido já carregando o tal porquinho de madeira nas mãos, num andar vagaroso que tinha muito mais a ver com o fato de estar curiosa com o objeto que trazia consigo do que com alguma debilidade senil.
— É isto?
— Sim, querida, é sim. Me dê aqui!, respondeu Severino.
— O que você vai fazer?
— O que eu disse. Temos que quebrá-lo.
Mesmo adoecido, Severino reuniu forças e jogou o porquinho
contra o chão, que se espatifou, deixando todos os papéis à
mostra.
—
Minha velha, precisamos agora ler todos os papéizinhos, um por um. Vamos
fazer assim: eu leio um, você lê o outro, até terminarmos.
— Tá bem, meu amor, como quiser.
— Eu começo. Vou pegar este aqui. Arrá, veja só! “Prosperidade”!
—
De fato, estamos com uma vida bem melhor hoje do que quando nos casamos. Aquela
viagem à Lisboa foi um presente de papai para nós. Você não tinha um
tostão na época, disse Teresa.
—
Existem coisas que não precisam ler lembradas. Mas viu só? Funcionou. Leia um
agora.
— “Amor”. Imaginei que eu pudesse encontrar isso, sorriu a velha.
— E como nos amamos, Teresa!, Severino tocou a mão da esposa, cheio de ternura.
— Sem dúvida..., Teresa beijou-lhe a testa.
— Vamos ver esse aqui. “Felicidade”. Se depender de mim, está certinho. Sou muito feliz com você. Sempre fui, desde antes do nosso casamento, disse ele enquanto a esposa concordava imediatamente com a cabeça. Sua vez!
— “Cumplicidade”, leu Teresa. Realmente, além de bons amantes, fomos amigos a vida inteira. Está ficando interessante
isso. Vai!
—
“Longevidade”. E de fato, chegamos até aqui... uma vida inteira
juntos, minha velha! Pegue outro.
— “Paz”.
— Nunca tivemos grandes problemas em nossa vida, concorda?, perguntou o homem.
— Sim, sim, tivemos uma vida tranquila!, respondeu Teresa.
— Agora esse outro aqui..., disse Severino, pegando mais um papel para ler.
Entretanto, o homem não conseguiu dizer o que estava escrito em voz alta. A concavidade da boca do velho inverteu-se, transformado o sorriso pelos felizes votos lidos na manifestação de uma dor abrupta. Convulsionou violentamente, e segundos depois ficou imóvel, de olhos abertos, deixando o papel cair no chão. De forma serena, Teresa deitou sobre o peito do marido para sentir a sua respiração, e constatou que o velho estava morto. Em seguida, pegou do chão o papel
fatal que seu marido havia lido. “Morte de Severino”, leu ela, satisfeita, ao som do velho radinho.
Desilusão, desilusão
Danço eu, dança você
Na dança da solidão
Havia ainda um último papel desconhecido, próximo aos estilhaços do porquinho. Teresa o guardou sem ler. Dias depois, ela embarcou para Lisboa a fim de reencontrar-se com Antônio Maria. Marcaram de conversar no famoso Parque Eduardo VII, onde o carpinteiro surgiu com a aparência de um rapaz vinte e tantos anos; a mesma aparência de quando eles se conheceram em sua loja de artigos em madeira, durante a lua de mel de Teresa e Severino.
— Foi infalível, disse Teresa.
— Sempre é. Essa receita possui centenas de anos, explicou Antônio.
— Lendas do velho mundo..., completou a velha.
— Gostou do sinal?
— Sim. O beija-flor voou paradinho na minha frente, olhando para mim, exatamente como você havia dito que aconteceria. O anúncio de que havia chegado a hora.
— E trouxe o papel?
— O último, está aqui. Não o li ainda.
— O que está esperando?
— Vejamos. "Eternidade de Teresa". A minha eternidade...
— Como você bem sabe, tanto esse papel quanto o da morte de seu marido, fui eu que os escrevi e os coloquei no porquinho antes de oferecê-lo como presente..., disse Antônio Maria ao acariciar o rosto de sua amante.
Admirada, Teresa olhou no fundo das pupilas do jovem Antônio. À medida que era envolvida por ele num abraço suave pela cintura, suas rugas iam desaparecendo, sua pele se iluminava, novos cabelos nasciam de seu couro e se alongavam em seda, e seus músculos ganhavam um aspecto firme e torneado, condizentes com os de uma jovem que faz loucuras por amor.
A poucos metro dali, um fadista de rua se inspirava naquele belo e jovem casal apaixonado, e começava a dedilhar sua guitarra portuguesa enquanto cantarolava.
Ao largo ainda arde
A barca da fantasia
E o meu sonho acaba tarde
Deixa a alma de vigia
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Muito interessante!! Sua narrativa faz a gente viajar......
ResponderExcluirGostei muito!@
Parabéns!!
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