Se há pouco mais de um ano alguém tivesse me pedido para pensar em uma situação
caótica capaz de cancelar o Carnaval, eu talvez pudesse mencionar uma guerra
imprevista contra alguma nação implicante ou talvez citasse algum desastre
natural de grande magnitude. Ou, quem sabe ainda, eu imaginasse uma mudança
sócio-política-cultural drástica causada por uma revolução evangélica, onde o
Estado se tornaria oficialmente cristão e a população se dobraria aos
preceitos bíblicos mais autoritários (assim como aconteceu no Irã com a
Revolução Islâmica).
Todas essas distopias eu poderia considerar como grandes motivos para acabar
com o Carnaval em nosso país. No entanto, dentro de minha visão limitada de
possíveis tragédias, eu jamais incluiria o surgimento de um vírus com
potencial pandêmico.
Meu amigo Samuel me convidou em cima da hora para passar o feriado com ele no
Rio de Janeiro. Ficamos hospedados em Copacabana e o que vimos foi uma cidade
que, de fato, rendeu-se à pandemia—pelo menos nas regiões mais centrais e
turísticas, como era de se esperar. As praias pareceram mais vazias do que
costumam estar num final de semana comum de sol, não vimos sinais de blocos de
Carnaval ousando desfilar nem mesmo por entre as vielas mais escondidas da
cidade para tentar escapar da fiscalização, e não ouvimos batuques, funks,
ivetes e anittas saindo das janelas das casas, dos carros de som e
reverberando por entre os concretos da cidade. O Rio de Janeiro estava, de
certa maneira, recolhido. Talvez ainda fosse insuficiente dada à gravidade da
crise, mas acredito ser esse o máximo de comedimento do qual os cariocas são capazes.
O mais próximo que vimos de um Carnaval típico foi a figura de um sujeito
embriagado e solitário vestindo lantejoulas e vagando sem rumo pelas ruas de
Ipanema; uma alma fantasiada fantasiando uma folia que dessa vez não lhe era
permitida. Como um peixe fora d'água, o homem parecia se debater pelas
calçadas à procura de um pingo de festejo que fosse e que pudesse dar fôlego
aos seus desejos frustrados; um pobre ser cantando axé, importunando as
pessoas, relutante, totalmente desconectado da realidade ao seu redor. Dessa
vez, ele teve que encarar o fato de que não estaria sob a chuva curadora de
ressaca na Avenida Vieira Souto em meio à libertina aglomeração de fevereiro.
Esse foi um Carnaval desprovido de música, de purpurina, de beijos e de
excessos pelas ruas cariocas.
Samuel e eu aproveitamos nossa viagem ao Rio conforme planejamos: passeando
pela cidade, só nós dois, a fim de descansarmos um pouco da atmosfera cinza
paulistana, andando pelas orlas da zona sul e pelo centro da cidade,
conversando e tirando fotos, como se aqueles fossem dias de folga
absolutamente comuns. A gente sabia que não encontraria nada muito diferente
do que se encontra na cidade fora da época de folia, e, é claro, nem tínhamos
esse intuito.
E foi dentro desse contexto de uma viagem leve e prosaica de dois solteiros em
pleno Carnaval que eu me lembrei da requintada Confeitaria Colombo,
tradicional confeitaria carioca inaugurada no Século XIX. Como Samuel não a
conhecia, propus que fôssemos tomar um café por lá. No entanto, a fila para
entrar na Colombo estava grande, e dentro dela havia muita gente; não seria
uma boa ideia ficarmos ali. Assim, partimos para um lugar pelo qual havíamos
passado anteriormente e que tinha nos chamado a atenção: a ótima cafeteria
Grão Raro.
Samuel e eu subimos para o segundo andar do estabelecimento. De todas as mesas
que estavam lá, uma se destacava das demais por ser mais baixa, feita de
madeira mais escura e com aspecto de móvel antigo—provavelmente colocada ali
para agregar charme ao local. Em torno dela, poltronas confortáveis em vez de
simples cadeiras: em outras palavras, um convite ao relaxamento enquanto se
degusta um café de príncipe. E, para a minha surpresa, não havia ninguém
ocupando o espaço. Foi ali então que obviamente escolhemos sentar.
Minha experiência de passar pela terceira década de idade tem envolvido cada
vez mais o café. Se aos vinte anos eu não compreendia bem como as pessoas
apreciavam tanto a bebida, aos trinta e três eu me entrego a diversas doses
diárias; muito mais do que somente para me manter acordado, mas para
espairecer em meio às tarefas do dia, conversar com amigos e refletir sobre os
meus propósitos e rumos. Não duvidemos que decisões políticas importantes e
que impactam a sociedade certamente são tomadas—ou ao menos têm suas
discussões bem encaminhadas—na hora dos cafézinhos informais da alta cúpula. E
eu acredito que em algum momento da vida, mais cedo ou mais tarde, toda pessoa
se rende ao café, por mais resistente ao hábito que seja. Alias, eu não confio
em quem nunca teve pelo menos um pequeno intervalo na vida de apreciação do
café. Pessoas que possuem aversões robóticas a experimentações lícitas não me
seduzem; ao contrário, me assustam.
Já com nossos pedidos postos à mesa, Samuel percebeu que embaixo dela havia
uma gavetinha discreta. Felizmente eu tenho amigos que são bem mais atentos a
detalhes físicos do que eu (além de serem curiosos na mesma medida). Samuel
abriu a gaveta e, assim, fomos surpreendidos por uma pilha de bilhetes
escritos à mão, em guardanapos. Eram apenas recadinhos, elogios à cafeteria,
frases bobas, e também algumas declarações de amor. Nenhum dos bilhetes era
assinado, embora todos estivessem datados. Todos escritos recentemente, sendo
que o mais antigo era do início de 2019; não sei se pelo fato de aquela mesa
estar há pouco tempo no estabelecimento ou se, talvez, os funcionários joguem
fora os bilhetes mais antigos (o que seria uma pena).
Alguns bilhetes vinham de grupos de amigos que tomavam café juntos nos intervalos da labuta, quando um deles teve a curiosidade de abrir a gaveta. Muitos
bilhetes descreviam justamente o encanto das pessoas ao descobrirem aquela
gaveta; sensação essa que Samuel e eu também experimentamos de imediato. Um
dos bilhetes tinha sido escrito em 2019 por duas mulheres e falava da amizade
entre elas. Ele foi respondido em 2020 por dois homens, também amigos, que
ratificavam o sentimento das mulheres que ali estiveram ao celebrar também,
diante de suas xícaras de café, o companheirismo que existia entre eles.
Li também o bilhete de um casal franco-brasileiro que exaltava o amor e a
cumplicidade entre os dois, onde cada frase escrita pelo rapaz francês era
sucedida pela tradução da moça em português, criando assim uma alternância de
idiomas e letras. Um mimo para quem lê. Alguns bilhetes estavam escritos em
espanhol também; eram turistas latino-americanos felizes ao encontrarem na
capital fluminense um cantinho discreto, silencioso e tão cheio de histórias
contadas dentro de uma gaveta que passa quase despercebida.
Outro recado era de um rapaz que não sabia se frequentava aquela cafeteria por
gostar do café com a garota que sempre o acompanhava ou se algo além da amizade estava acontecendo entre eles.
"talvez seja bem mais do que só isso. Quem sabe?", escreveu ele. Acabei
imaginando a história por trás daquele bilhete. Talvez ele, rapaz tímido, não
tenha mostrado à garota o que ele havia escrito e, possivelmente, ela tenha
ficado curiosa. Talvez ela tenha retornado à cafeteria no dia seguinte, sozinha,
para abrir a gaveta e ler o guardanapo de seu pretendente. E quiçá eles
tenham começado a namorar após descobrirem que ambos compartilhavam a mesma
vontade. Jamais saberia, mas torci pelo casal.
Li todos os guardanapos; pessoas e frases separadas pelo tempo, em que um
bilhete incentivou a escrita de outro. E, diante disso, eu me pergunto sobre
quem deixou o primeiro bilhete. Alguém abriu a gaveta vazia e teve a ideia de,
pela primeira vez, escrever sentimento num guardanapo e deixar ali. Eu
gostaria de ser amigo dessa pessoa. Uma alma com tamanha sensibilidade
criativa certamente pertence a alguém de quem eu gostaria de ser próximo.
Afinal, eu não acredito que aquela mesa com gaveta tenha sido posta ali para
incentivar pessoas a deixarem bilhetes anônimos em guardanapos; mas foi essa a
utilidade que a primeira pessoa que escreveu deu a ela, motivada por uma
inspiração e uma delicadeza vindas de coisas que somente o seu coração seria
capaz de revelar.
As pessoas gostam de expressar o que sentem sem necessariamente se expor. Além
do desabafo, existe nessa atitude um toque gostoso de mistério, tanto para
quem escreve quanto para quem lê tempos depois. Muito mais do que palavras, os
bilhetes retêm a energia de quem escreveu para iluminar depois novos curiosos
clientes do local. Recados assim, nada de mais e ao mesmo tão cheios de
histórias singelas que nos fazem sorrir. Sentimentalidades registradas em
guardanapos que foram privilegiados ao receber tinta de caneta dos mais
inspirados em vez de gordura de lábios de gente distraída.
Foi uma pequena felicidade para mim ter encontrado aquela gaveta. Mudou o meu
dia, mesmo que ele já não estivesse sendo ruim; apenas o tornou incrivelmente
melhor. E pensar que ela chegou até nós através da combinação de dois acasos:
um Rio de Janeiro sem folia, o que me permitiu dedicar algum tempo a tomar um
bom café com um amigo no meio da tarde, e o plano inicial frustrado de levá-lo
para conhecer um local bem mais turístico, o que de fato permitiu com que nos
deparássemos com a tal gaveta.
Preciso dizer que deixei um guardanapo tingido e anônimo por lá também, é
claro. Eu não perderia essa oportunidade. Quem estiver por perto e for curioso
o suficiente, pode subir os degraus da Grão Raro, procurar a mesa mais
distante e diferente do segundo piso, abrir a gaveta e se encher de ternura
com todos os recados. Aproveite e tome um café; deixe-se levar junto com o
vapor aromatizado que se eleva da xícara e se expande em graça—a gente merece
um pouco disso. A cafeteria está situada na Rua da Assembleia, 87, Centro do Rio
de Janeiro.
Meu amigo e eu retornamos ao hotel após o dia inteiro de passeio. Entrei no
banheiro, tirei a roupa e me olhei no espelho antes de entrar no box. Dessa
vez, eu havia terminado aquela noite de Carnaval sem a purpurina que persiste
por dias agarrada à pele após os blocos; aquela que só vai saindo da gente
poucos, sucumbindo aos banhos frios da rotina. Dessa vez, eu não exalava
aquele cheiro característico de cerveja misturada com suor que impregna até
quem não bebe e não sua. Além do mais, eu não tinha as pernas doloridas de tanto pular e nem
estava rouco das marchinhas. Naquela noite, não havia fantasias sujas,
rasgadas, e tampouco lantejoulas caídas espalhadas fazendo brilhar o chão do
quarto. Por um belo acaso, o brilho daquele dia assumiu formatos de letras à
mão e supriu em mim a carência das luzes carnavalescas.
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