Minha mãe não gosta de coentro, assim como muitas pessoas. Não foram poucas as
vezes que eu a ouvi dizer que esse polêmico condimento estraga a comida. Embora seja uma
mulher doce e compreensiva, dona Rose costuma ser assertiva quando ela acha
algo ruim. E para a comida temperada com coentro, não há salvação.
O
banquete pode ter sido preparado pelas mãos mais experientes, pelos chefs mais
renomados da alta gastronomia, avaliado em cinco estrelas por todas as revistas de culinária francesa, mas se minha mãe percebe o coentro por ali,
verdinho, picado e aparentemente inofensivo tentando se esconder, ela não
valoriza o prato. Sente logo o cheiro; desiste antes de pôr na boca. “Tem coentro aqui!”, reclama fazendo cara feia, nariz torcido; empurra! Entra em
saia justa e tenta ser discreta para a desfeita não ficar muito na cara. Coentro é mau gosto do cozinheiro, diria ela. Desse jeito, sem meio-termo.
Para a minha mãe, o coentro é como um sujeito de má índole, persuasivo, que infesta a
boa comida e a desvia também da virtude; o mau-caráter dos temperos. Coentro em comida gostosa é como
uma pessoa bonita e cretina. Não vale nada no final das contas, não cumpre o pré-requisito para ser digna de nota. É nota zero. Apetitosa por
fora, mas que não presta quando se chega perto, quando cheirada, quando
consumida. “Diga-me com quem andas e te direi quem és”, diz o ditado. De coentro,
minha mãe mantém distância. Nem sob demanda ela compra; tampouco usa. E se come
enganada, não lhe desce; cospe.
Sendo assim, não é difícil supor que eu tenha sido um menino criado alheio
ao coentro. Com o privilégio de ter uma mãe presente e que sempre foi
integralmente dedicada à casa e à família, quase todas as refeições que fiz
na vida até me tornar adulto foram amorosamente preparadas por ela. Com
exceção de pouquíssimas aventuras em restaurantes ou na casa de outras
pessoas onde o coentro deu às caras e causou estranheza ao meu paladar, eu
não fui habituado ao controverso tempero.
Foi somente depois de grande que eu conheci melhor o coentro. Do portão de
casa para a rua, feito pássaro que descobre que o mundo é muito mais do que
o próprio ninho; que ele é composto por outras cores e aromas, nem sempre
tão bons, às vezes entre muitas desventuras, mas sempre guardando a jornada
necessária que cada indivíduo deve fazer. E quem me apresentou de vez esse
tempero tão diferente, quase sem querer, sem imaginar que pudesse tanto;
quem primeiro salpicou condimento sobre mim, por inteiro, em quantidades que
até então eu jamais havia pensado ser capaz de dar conta... foi ele, o Pedro (nome
fictício).
Pedro e eu nos conhecemos em abril de 2009, na universidade, sob o calor
desumano do Rio de Janeiro e em meio à nuvem carregada da faculdade de
engenharia, que, somados, fritavam nossos miolos e nos faziam suplicar por
distração fresca. E encontramos na companhia um do outro a brisa perfeita.
Não compartilhávamos as mesmas salas de aula, embora estivéssemos dentro do
mesmo centro de ensino. Entre almoços, conversas e caminhadas juntos ao longo dos
labirintos infinitos de corredores, fortalecíamos nossa amizade até ter se tornado impossível para um desassociar o outro daquele
ambiente.
Pedro começou a fazer parte das coisas com as quais eu me ocupava no
campus. Tal qual uma disciplina de cálculo, passei a sentir a
necessidade de dedicar-lhe algumas horas semanais. E uma vez estabelecidas
nossas afinidades, começamos a nos frequentar também fora do ambiente universitário. Percorríamos a cidade inteira juntos atrás das diversas atividades
de lazer que nos agradavam e, entre uma e outra, sacolejávamos em ônibus e nos espremíamos no metrô. Éramos figurinhas assíduas no circuito cultural
carioca, sempre quando possível; e assim, naturalmente, cada vez mais íamos
conhecendo aspectos particulares da vida um do outro.
Em "Dom Casmurro", Machado de Assis descreve em primeira pessoa o processo de intimidade desenvolvido entre o protagonista Bentinho e seu melhor amigo Escobar, no seminário:
Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até ao fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. (...) como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou...
Pedro logo se tornou o meu Escobar, o portador das chaves que abriram todas as portas e janelas da minha alma; a quem eu confiei segredos e com quem eu ficava plenamente à vontade. Certo dia, correspondendo a toda confiança que eu lhe inspirava, Pedro me fez um convite: quis que eu almoçasse em sua casa no fim de semana, com sua família.
Além de estudante de engenharia, Pedro também fazia parte de uma família
nuclear de quatro pessoas, assim como eu. Seus pais também eram casados e
ele também possuía um irmão mais novo, da mesma idade que o meu. As
condições econômicas de nossas famílias eram iguais. Ambas haviam se
estabelecido na periferia da cidade, torciam majoritariamente para o mesmo
time e tomavam decisões importantes entre goles de cerveja.
Talvez todas
essas coincidências, ainda que nenhuma delas fosse incomum, tenham feito com
que tudo naquela casa me parecesse familiar. As cores, o cheiro dos móveis,
os sons das vozes dos pais dele, a forma descontraída com a qual eles
tratavam de amenidades—assuntos sobre avós, tias e vizinhos—e até mesmo os mosaicos de luz e sombra projetados nas paredes ao balançar das cortinas entreabertas; tudo ali me parecia encantadoramente comum. E de tão familiar
que aquele ambiente era para mim, não demorou muito para que eu fosse tomado
por um aconchego que me envolveu de maneira tão natural e tão
simples quanto eram naturais e simples também a alegria e a união presentes
naquele lar.
A diferença marcante (embora boba) que pude notar entre nossas famílias veio
dentro de um prato de comida que me fora servido carinhosamente pela mãe de
Pedro: muito bem temperado com o famigerado coentro. Filho de pais
nordestinos, o coentro parecia ser uma especiaria corriqueira nas refeições
daquela família. Pude sentir o aroma antes de provar. No mesmo instante,
lembrei de minha mãe, e talvez por isso mesmo eu tenha esboçado um sorriso. Fui questionado se estava tudo bem, e confirmei que sim. Não havia
absolutamente nada de errado ali, muito pelo contrário: a comida estava deliciosa, não deixei nada no prato. O coentro nunca me incomodou como
incomoda minha mãe, embora a já mencionada estranheza que eu
experimentava com tempero—muito mais pela falta de costume do que pelo gosto
em si. É curioso eu não lembrar o que eu comi naquela tarde agradável dentro
daquela casa, mas lembro do coentro tomando conta de tudo: do prato, do ar,
de mim mesmo.
Terminamos de almoçar e, após algumas conversas de cafézinho, os pais e o
irmão de Pedro foram para sala, enquanto meu amigo e eu nos dirigimos para o
quarto dele. Fui até a minha mochila, que estava ao lado de sua cama, para pegar a escova de dentes. Ao me virar para ir ao banheiro, vi que Pedro estava diante da porta (que ele havia fechado), com uma mão apoiada no batente. Pedro me olhava
naquele momento com a mesma ternura e admiração com as quais ele aprendeu
rápido a me olhar desde o dia em que nos conhecemos: um olhar raro que, de
tão dedicado e entregue, faz com que qualquer pessoa não se sinta digna
dele, ainda que ela possua virtudes legítimas. E eu era um merecedor; um
virtuoso pela inocência, embora confuso na mesma medida. Parei diante de
Pedro, que, ao me agradecer por eu ter aceitado o convite para o almoço, me
abraçou com delicadeza. Éramos apenas dos meninos de vinte e dois anos de
idade contidos no abraço um do outro; um abraço dentro do qual cabia todo o resto
do mundo e que, portanto, fora dele, não desejávamos estar.
Hoje, distante, vejo que a nossa amizade começou na nascente de um rio,
brotou das afinidades da terra, e foi tomando maiores proporções conforme as
águas corriam montanha abaixo, desciam em cachoeiras com a força dos
encontros e se chocavam com as pedras da dúvida. Vencidas as quedas, as
águas então suspendiam leves feito poeira, espalhavam-se em fumaça de
gotículas e formavam arco-íris baixos que podíamos tocar. E assim
precipitavam e tornavam a correr. Não posso dizer que eram destemidas, mas
eram águas limpas, transparentes, que se ajustavam ao relevo e seguiam
fluidas como deveriam ser, tão firmes quanto serenas, rumo à foz
desconhecida da qual jamais podiam retornar. Havíamos chegado ao oceano; o
curso de um rio é irreversível. Pedro e eu nos beijamos.
Pedro era o tempero que faltava em minha vida, o coentro proibido lá em
casa. Até aquele momento, eu havia me ocupado apenas de sais supostamente
milagrosos que sempre se mostravam insossos no final. Pedro realçou verdadeiramente o
sabor dos meus dias e me mostrou entre carinhos e até mesmo entre desacordos o
quão incríveis éramos e o quão maravilhosas eram as coisas que podíamos
viver juntos. Tudo era permitido; tudo era válido.
Permanecemos ainda algum tempo dentro daquele quarto, no calor de temperos um pouco mais
picantes, até que eu precisei ir embora—sempre me pareceu cedo demais deixar aquela casa nas outras (tantas) vezes depois em que
estive lá. É incrível saber que hoje eu consigo reviver aquele ano, lembrando de
todos os sentimentos envolvidos, mas sem senti-los de fato; nada além de um
imenso carinho e respeito que ficaram por essa história. (E isso é tudo.)
Cheguei em casa naquele dia, quase à noite, e encontrei minha mãe sentada
diante da televisão. Certamente ela notou as estrelas em meus olhos, pois
logo me perguntou o que havia acontecido—percepções que só mãe é capaz de
ter; esse dom de olhar para dentro da gente e esmiuçar detalhes. Mas eu não
disse nada, não naquele momento, naquela época. Eu não queria que a minha mãe
tivesse tamanho dissabor por minha causa. Afinal, como eu poderia revelar a
ela que eu havia almoçado um prato inteiro de comida temperada com coentro na
casa do meu amigo, e que eu havia gostado tanto? Um pecado gastronômico
assim tão grave precisava ser mantido em segredo.
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O gosto pelo tempero é uma metáfora, o texto fala sobre descobertas e experiências que o mundo exterior nos apresenta. As vezes os pais limitam o gosto dos filhos e criam tabus. Nos sabores e amores. Amei!!
ResponderExcluirObrigado por esse comentário lindo! ❤️
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